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Publicado em 03/06/2015
QUANDO VOCÊ PRECISA DE UMA PSICANÁLISE?
Por definição, se você procura o psicanalista, está tentando descobrir qual a sua responsabilidade no seu sofrimento; está tentando reescrever seu destino; reescrever sua história e seu futuro. Pois, se o destino não está escrito, o passado também não. De algum modo o paciente de análise intui que pode ressignificar suas memórias, construir um outro passado para si e ser sujeito de sua vida, sem grandes acidentes.
A psicanálise acende uma vela na escuridão pessoal e permite ver algumas silhuetas de si mesmo, pois onde há sombra há luz. Mas acredite, com esse pouco de luz dá para se ir longe na arte de existir. A psicanálise é uma vela e não uma bengala. Não ofusca e nem se entrega ao breu.
O resultado, depois deste período de purgatório pessoal, é contentamento e serenidade; energia e atitude; responsabilidade e generosidade. Estes estados formam um eixo, que podemos chamar de amor. É muito comum que uma psicanálise se encerra quando a pessoa descobriu a capacidade para amar, fazer sexo, criar e cuidar, projetar, realizar. Afinal, foi Freud quem disse: “Todo tratamento psicanalítico é uma tentativa para libertar o amor recalcado.”
Do ponto de vista do viver cotidiano a psicanálise ajuda o paciente a alterar a posição que tem em relação à realidade; mudar o ângulo de visão da paisagem pessoal e do mundo. Por meio da análise dos atos falhados (você quer fazer uma coisa e faz outra), dos chistes (pilhérias, brincadeiras, gracejos), dos sonhos, dos lapsos de língua (quer dizer uma coisa e sai outra), dos medos irracionais, da associação livre e das metáforas, o analista ajuda o analisante a encontrar uma nova expressão para seus impulsos frente a vida.
Em alguns casos se pensa a psicanálise como uma clínica do vazio - de afeto, de expressão libidinal ou, em resumo, dos destinos do desejo. Como o vazio do humano - aquilo que o define enquanto humano - não pode ser evitado ou totalmente compreendido, resta ao analisante tornar-se real, isto é abandonar o ressentimento do injustiçado, a saudade dos tempos infantis, em que tudo era felicidade, ou a ilusão de um ser humano ideal. A psicanálise não se situa como pessimista, ainda que trate destes temas de vazios que nunca serão totalmente reparados; situa-se, mais exatamente, na vertente de uma arte de si, ainda que com os escombros do paraíso que veio abaixo, perdido numa terra distante, chamada infância. É por isso que diz-se: “Não se pode mudar a direção do vento, mas pode-se alterar a posição das velas.” (Denise Maurano)
"Em última análise, precisamos amar para não adoecer", disse Freud. Destaque-se que Freud fala de "amar", antes de "ser amado". Ser amado produz sentimentos de ser aceito, diminui a carência, mas amar é sublime, é de outra ordem, outro patamar existencial. Creio que amar cura mais que ser amado, daí que uma psicanálise deveria levar o analisante a amar, pois apenas ser amado ainda não é o melhor curativo da vida. Sonhamos ser amados e muitas vezes esse é o objetivo do paciente, tanto na sua vida no divã, quanto em outros lugares do mundo. Mas, é muito claro, que aquelas psicanálises que chegam a criar as condições psíquicas para que o analisante ame, antes de ser amado - são as mais efetivas e amplamente curadoras. "Ser amado" não se compara a "amar". Talvez só cheguemos à medula da vida quando estivermos em condições para amar, antes mesmo que sejamos amados. Talvez esse estado de bem estar só seja superado pelo "amar e ser amado"! Mas o segundo não pode ser condição para o primeiro, pelo menos em psicanálise...
Os motivos pelos quais uma pessoa procura o psicanalista quase sempre encobrem os motivos reais, mas podemos dizer que se trata de encontrar essa capacidade para amar. Antes disso, muitos pacientes têm um sentimento de nada ter no seu próprio centro. Winnicott, psicanalista inglês, cuja obra orienta minha atitude frente ao analisante, tentou várias vezes, e em diferentes momentos, lembrar deste "nada no centro" de algumas pessoas - o verdadeiro motivo que leva muita gente até a análise. Em uma nota de 1959, Winnicott expôs o caso de um homem - que ilustra essa experiência do "nada central". Na análise, o psicanalista teve que se haver com um "estado de chafurdamento" que era muito alarmante para o analisante. Depois de analisado o grosso das defesas contra essa mistura de atolamento, lama, lodo, onde nada impressionava, mas também nada podia ser criado, o paciente se deparou com o que chamo de "limbo" - um espaço em que os significados comuns da vida inexistem; apenas se reage ao que é imediato, necessário ou às urgências físicas. Um espaço que é uma borda, uma margem, onde os significados usuais da vida ficam nesta orla, litoralizados, sem poder habitar o centro do eu.
"Em determinada camada, quando gradualmente eliminamos todas as colisões, de maneira que ele não tinha mais nada a que reagir, ele se tornou uma coisa no espaço, a ignorar o tempo e a posição", diz Winnicott. Essa experiência de nada central é muito explorada por James Grotstein em seu livro "O buraco negro", relacionando-o com o sem-sentido, o caos e o aleatório no viver. Viver de modo aleatório, caótico e sem sentido é o que toma o centro da pessoa que vivencia este estado de nada ser - sem organização e integração pessoal suficientes para sentir que existe como um "eu". Sente-se uma coisa e frequentemente coisifica o que toca ou vê.
Um dos meus pacientes que vive neste estado de viscosidade existencial diz: "olho para as pessoas e as vejo como são por dentro - somente ossos, e órgãos". Seu sofrimento indizível é traduzido cotidianamente em acontecimentos descarnados ou desalmados; suas vivências pessoais são simulacros de vivências, ele as vive como vindas de fora, sem relação pessoal com seus resultados em si mesmo ou no mundo. Suas vivências não lhe concernem; elas são acidentes. Elas não se tornam experiências pessoais; no máximo são vivências. Sua psicanálise se dá remontando um ego que possa migrar a libido das fixações orais, para as anais e finalmente habitar um terreno genital-fálico - um trabalho de uma vida inteira para florescer algo em seu centro.
A psicanálise, em certos casos, primeiro proporciona um centro de gravidade para que o conjunto de experiências do eu façam uma rotação e translação minimamente necessárias para que o analisante possa se tornar uma pessoa total, no dizer de Winnicott. Não se trata de uma cura, e sim de uma construção, que se dá da pele para os órgãos. O problema reside no fato de que o construtor é o próprio analisante, cujo olhar está comprometido pelo nada central e que, a despeito disto, deve erigir seu próprio centro onde nada ou muito pouco viceja. Um trabalho para um Hércules... o resultado é a capacidade para amar e ser amado!
Levi Leonel de Souza
Psicanalista; mestre em Ciências da Linguagem
levileonel@yahoo.com.br
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